Friday, November 04, 2005

A Mikas

Não gosto de me recordar da Mikas. Nunca me recordo. É uma questão de princípio não me recordar das coisas que passaram. Passou, acabou. Mas às vezes, por razões mais ou menos racionais lá vem uma recordação.

Já não me lembro do que é que ía falar. Ah! Já sei, da Mikas. Conheci-a numa acção de formação que frequentei no Algarve sobre como conseguir fundos para fazer acções de formação em hotéis na época baixa. Como ela não tinha calculadora pediu-me a minha emprestada e eu acabei a fazer as contas à mão.

É muito complicado perceber as mulheres. Arranjam sempre um bom motivo para durante o café-partido levar a conversa para fora dos temas puramente profissionais. Eu tinha a intenção de confrontar o monitor com uma série de questões muito pertinentes sobe os fundos, as faltas de fundos, as acções e a falta de formação, mas por causa da calculadora acabei a discutir com a Mikas, na ocasião ainda Dra. Miquelina, a falta de qualidade do café e de como isso produzia efeitos de dramática sonolência no resto da acção. A Mikas usava a sua voz rouca para me dizer que havia coisas muito mais capazes de lhe tirar o sono do que o café. Fiquei com a ideia que ela andava a meter qualquer coisa, o que na altura me deixou um bocado perturbado.

No café-partido da tarde ela pediu-me que lhe fosse buscar um sumo de laranja. Parece uma coisa simples mas não é. Porque um sumo de laranja deve ser feito de laranjas e o que tinham para dar aos formandos era um sumo instantâneo com cheiro a urina pós-coito. Perguntei se não tinham sumo de laranja natural e foi-me dito que aquele era natural mas eu podia juntar gelo. Insisti que queria o sumo natural de laranjas verdadeiras. Não tinham. O único sumo natural era aquele, feito de pó dissolvido em água mineral, mas se eu quisesse poderia ir ao bar do hotel pedir um sumo espremido no momento. Fui ao bar do hotel e disseram-me que estava fechado àquela hora por estar a haver um quebra-café numa acção de formação. Depois de alguma conversa o recepcionista disse-me para eu tentar directamente na cozinha. Na primeira subcave encontrei o que parecia ser uma cozinha mas veio a revelar-se uma lamentável lavandaria. Tive sorte porque estava lá uma empregada que me orientou na direcção da segunda subcave onde encontrei a porta principal da cozinha. Bati e como ninguém me atendeu entrei. A cozinha estava às moscas. Havia centenas delas. Depois de procurar encontrei um saco com laranjas. Com um pano espantei as moscas de cima da fruta e peguei em três laranjas que me pareceram adequadas para um bom sumo. Logo a seguir encontrei uma máquina espremedora eléctrica que por azar estava muito suja. Pensei que já que estava ali não ia desistir e por isso desmontei a máquina e lavei com o cuidado possível as peças que entravam em contacto com o sumo. Foi uma tarefa difícil e demorada porque estava tudo um bocado encardido e o detergente era muito agressivo para as mãos mas tinha dificuldade em descolar os sucos antigos do alumínio. Logo que consegui ter a máquina montada pude fazer um excelente sumo de laranja. Posso dizer que as coisas estavam a correr bem não fosse a dificuldade em encontrar o caminho de regresso à sala da formação. Quando finalmente consegui encontrá-la já os trabalhos do dia tinham terminado. Fiquei um bocado aborrecido porque acabara perdendo uma sessão importante em que se ia falar da correlação entre a formação e os custos na óptica da oportunidade e suas consequências. Achei que a Mikas me poderia transmitir aquilo que tinha perdido e fui à recepção saber em que quarto ela estava. Dirigi-me ao quarto 269 que era muito perto do meu, o 296. Bati duas vezes e a Mikas gritou lá de dentro para entrar. Estava no banho e lá continuou mais meia hora. Quando apareceu entreguei-lhe o sumo e perguntei-lhe que tal tinha sido o resto da sessão da tarde. Ela não respondeu, bebeu o sumo e sentou-se em cima da larga cama.

Então disse-lhe: "Porque estás triste? Não te dei já o sumo de laranja que querias?"


(continua)


Lino Centelha


5 comments:

Fausta Paixão said...

Ai Lino, é bem certo que compreender os homens é cá um esforço!

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

gostei deste divertido enredo à volta da Micas e do sumo de laranja.

e tu não queres o teu prémio?

Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

"Acho a 23 muito gira. Tem um ar romântico e sensual. Faz-me lembrar uma cidade que visitei há tempos. Fico dividido entre o poema erótico e o épico. Meu Deus, como é difícil tomar decisões. Pode ser a para mim a 23?"

Sim, podes levar a 23. E que tal um épico erótico tipo ilha dos amores camoneano? A ilha, o rabelo, os amores, os que inventares.

Já estou a ver a estátua ao Grande Poeta Lino Centelha... no cais de Gaia. :)

beijo

Fausta Paixão said...

Sim, uma estátua. Mas... com telha ou sem telha?

Hipatia said...

E a continuação?

:)))

(pobre e mal agradecida, estará o Lino Centelha a pensar neste momento da Hipatia)

Adorei!