Tuesday, June 06, 2006

Por um partido político para a defesa dos tumores

- D. Yolanda, chamei-a aqui para a informar que tem um tumor no cérebro.
- Oh! Doutor! E é grave?
- Como tudo na vida depende do ponto de vista.
- Então o Doutor quer dizer que é benigno!?
- Bom. Seria pouco ético estar a tecer considerações sobre a bondade do tumor. Como sabe devemos manter-nos equidistantes e preservar a nossa independência em relação a tudo o que possa constranger a correcção dos nossos procedimentos.
- Não entendo Doutor. A minha vida está em perigo?
- Eu não queria ser muito literal porque certamente, mais tarde ou mais cedo, serei prejudicado quando me citar fora do contexto em que estou a produzir estas afirmações.
- O Doutor preocupa-me...
- Por quem é, não precisa de se preocupar comigo, D. Yolanda. A sua qualidade de minha paciente atribuída aleatoriamente pelos computadores do serviço nacional de saúde, é para mim um ponto de honra uma vez que foram as virtudes do acaso que nos juntaram neste momento histórico.
- Comove-me a sua dedicação...
- Analisando a sua questão sobre a 'gravidade' do tumor no cérebro eu penso que deveríamos chegar a um acordo sobre o conceito de 'gravidade' que vamos, neste caso concreto, partilhar. O que é que significaria para si ser grave?
- Porra, Doutor! Quero saber se vou morrer com isto!
- ...
- Peço desculpa...
- Eu compreendo a sua exaltação. Não é todos os dias que nos dão assim notícias que nos tornam uma situação excepcional. Devo entender que se preocupa com a morte...
- Claro, Doutor. Sou jovem. Tinha um futuro à minha frente...
- Em primeiro lugar quero que perceba que não sou eu o responsável por você ter essa coisa dentro da cabeça.
- Sim, eu sei... ninguém é responsável.
- Gostaria que compreendesse que do meu ponto de vista muito pessoal o seu caso não é grave.
- Não?!
- Se você fosse uma doente minha de catálogo, daquelas que chegam à minha procura de maneira activa e empenhada e procuram os meus serviços personalizados, eu até consideraria o seu caso como uma grande sorte para mim.
- Oh, Doutor...
- Mas não foi assim. Não há em si uma vontade explícita de ser minha doente. Chegou a mim por acaso. Não é provável que se entregue confiadamente nas minhas mãos. Depois de mim irá a correr procurar uma segunda e uma terceira opinião até que algum dos meus doutos colegas consiga tocar na corda da sua sensibilidade e determinar a sua crença.
- Eu estou a confiar em si. Só quero saber o meu destino.
- A D. Yolanda não consegue perceber que está na presença de um profissional. Eu não sou um amador. Faço umas horas aqui no hospital mas a minha vida não acaba aqui. Eu não posso considerar o seu caso grave quando ele tem o potencial de aumentar a minha conta bancária. Mas percebo que para si pode ser grave porque vai fazer baixar a sua.
- ...
- Do ponto de vista social é mais ou menos indiferente, apesar de a palavra tumor ser muito complexa, difícil e dolorosa, tem conotações à esquerda, traz alguma revolução, provoca alguma complexificação da coisa social. Mesmo assim é pouco relevante.
- ...
- Já do ponto de vista biológico é uma coisa do domínio do bem. Os tumores são uma espécie minoritária apesar de terem algum relevo social. Antes não se dava conta deles, estavam dentro dos sistemas socialmente aceites. O tumor era uma causa natural de morte. O que não é o mesmo que morrer atropelado por um eléctrico, ou como a morte química ou bioquímica ou radioactiva.
- Acha então que eu vou morrer?!
- Além da questão discriminatória. A perturbação das espécies. Um tumor é um objecto que tem em vista a diversidade biológica e por isso tem que ser preservado. Nesta minha faceta de funcionário público não liberal não vou querer tratar disso. Mas no meu consultório tenho que velar para que a ciência progrida.
- Vou morrer...
- Os concidadãos vão muito solidariamente pagar para tratar o seu tumor. Um tumor é um propriedade pessoal e portanto não deveria ter-se a preocupação de responsabilizar a solidariedade social com o seu problema. Como seu concidadão também não estou minimamente interessado em participar, ainda que modestamente, na resolução de um problema que é seu. A não ser que quisesse que a tratasse particularmente. Sem recibo. Sem provas. Eu não me posso envolver numa situação que me ultrapassa. Eu poderia ter-me dedicado à política. Poderia ser um autarca. Aí sim, a minha função seria preocupar-me com os problemas dos cidadãos.
- Vou morrer...
- Como médico estou preocupado com as variantes que vão florindo da natureza. Não tenho estrutura de açambarcamento moral. Interessa-me muito o ponto de vista do tumor. Uma forma de vida que deveríamos adequadamente proteger. Como médico sinto que o tumor tem muito mais a dizer-me, é muito mais atraente, do que a pessoa que o transporta.
- Já não tenho esperança...
- A D. Yolanda há-de reparar que há milhares de pessoas preocupadas com a vida de pessoas como a senhora. Agora diga-me: e os tumores? Quem se preocupa com os tumores? Que culpa têm os tumores para serem rejeitados por todos sem lhe darem sequer a oportunidade de se defenderem?
- Eu morro...
- Haverá um dia, D. Yolanda, em que os tumores hão-de mostrar a sua força e a sua importância. As pessoas vão perceber que têm estado a ser egoístas, que remeteram os tumores para um gueto e lhes retiraram direitos. É uma questão de tempo. A biodiversidade dos tumores, a ecologia dos tumores, os tumores como minoria marginal à sociedade. Incompreendidos, rejeitados, sem direitos, ...
- Adeus, Doutor.
- Isso, vai-te embora louca intolerante! Nunca perceberás. Esta gente é tão limitada que não enxerga os verdadeiros valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Como é que há gente que consegue ser tão insensível com os pobres dos tumores...


Lino Centelha

(ocorreu-me este diálogo ao saber que se tinha formado na Holanda um partido para legalizar a pedofilia, a pornografia infantil e a zoofilia...)

4 comments:

admin said...
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Mushu said...

PORRA!

vague said...

Num conceito "amplo" (?) de liberdade tudo seria permitido existir, não é? Só que não nascemos para servir a liberdade; ela existe para nos servir, humanos, gente.

vague said...

Melhor:
Não nascemos para servir a liberdade; ela é que existe para nos servir, enquanto Pessoas.